À deriva no sonho lúcido

 “Quando eu fechava os olhos, via um mar de estrelas me atravessar...” – Eu via estrelas e flutuava, no espaço que elas criavam entre si, eu me movia a minha vontade e sonhava que existia. Nesse sonho, com lar, barriga cheia e satisfação do consciente, eu desejava voar: eu queria voltar a ter a luz que se unia, em meio à escuridão, às estrelas que brilhavam, como quando vivia, ali, naquele MAR. O desejo era castrador, ou era isso, ou acordar!

Eu continuo existindo nesse sonho. Um sonho lúcido desde que comecei. Me questiono o quanto ele ainda me faz bem, o quanto, ainda, é primordial descobrir sua utilidade no plano das coisas. É um sonho caótico, em que corri por corredores estreitos, outras vezes largos, muitas vezes, em círculos... um labirinto! Não qualquer labirinto, mas um labirinto com centro. E esse centro, que eu almejava, não é o fim... é verdade que as paredes não existem nele! Há muitas flores e um lago que leva ao mar de estrelas. Eu poderia, até, me jogar, mas desaprendi a nadar. Eu ainda não entendi em que momento... não entendi como... já que habilidade adquirida não se perde, ao passo que você sabe de algo, não se pode mais deixar de saber... o que saltou aos olhos é que em meio ao centro do labirinto, a vastidão daquele espaço se prostrou diante de mim, já que as paredes não existiam. Mas mesmo assim, paralisei! Era o momento de me jogar do abismo. E eu o fiz.

Agora, caio em queda livre, enquanto estrelas, que estão longe de mim, passam pelo meu quadro de visão, borradas pelo efeito vertiginoso da queda... eu mexo os pés, os braços e, até, fechos olhos... tem alguém mais aí? ...

Acho que o sonho que ando vivendo é o que me prende. Ele é, exatamente, como os planos, mas não é como as experiências que acreditei, não desenvolve o que senti, quando no mar de estrelas comecei acreditar que tudo era verdade...

Suspenso

Há mais de um mês, todo dia eu choro em algum momento. Às vezes, o choro vem de motivos pessoais, na maioria das vezes, coletivo. Às vezes, choro o dia inteiro! Não importa muito por quanto tempo, onde, na frente de quem, a cara feia, a coriza nasal. Entretanto, tento usar a palavra da moda: Resiliência. Não a palavra, vocábulo, código de linguagem. Mas o sentido que habita nela. E no tédio do terceiro andar, com um vento delicado sacolejando as plantas e pelos de gatos flutuando pelos cômodos, eu me agarro à qualquer  motivo pra me sentir melhor. Pra não decepcionar os planos superiores.
Descobri, enquanto não chorava, que eu sei fazer bolo. E fica muito bom! Dei um pedaço generoso pras vizinhas do apartamento ao lado. Não sabia nem quantas pessoas moravam, ali. Dividimos a mesma encanação de banheiro. Uma parede muito fina divide nossas varandas. E não sabia que, ali, morava uma família bem tradicional, duas mulheres casadas com uma filha, sequer  tinha visto o rosto delas. Compramos cueca! Elas tem lojas de cueca. Elas nos deram panquecas, não sabiam que eu não como carne. Da última vez, que meu marido levou o bolo de limão, ficou combinado que quando a quarentena passar, precisamos fazer um jantar entre todos nós.
Eu tenho três gatos, dois deles nasceram juntos e vivem juntos desde então, parecem gêmeos siameses de tanto tempo que passam enrolados um ao outro. Ambos estão vivendo o quarto ano de vida. A outra, mais nova e menorzinha, foi adotada aos seis meses. Ela está vivendo seu segundo ano de vida. Há um bom tempo, que os outros dois não brincam muito. Achava que estavam velhos. Ontem, peguei um barbante rosa e estimulei. Fiquei exausto de tanto que corri pela casa com os três. Eles não haviam mudado. Era eu!
Desde adolescente, sempre sonhei em morar em outra cidade. Não estava fugindo de nada! Amo minha Volta Redonda. Contudo, sempre quis conhecer novas pessoas, novas formas de viver. Moro em um lugar que levo entre seis e sete horas pra chegar à Volta Redonda. Não tenho carro! Sinto uma saudade imensa da minha família e amigos. Os vejo com certa regularidade, coisa de 2 ou 3 meses de intervalo. Só que agora, não faço ideia de quando os verei. Mas uma coisa mágica aconteceu, falo ao telefone toda semana com a minha mãe por cerca de 2 horas. Antes, ela brigava comigo, sempre aos 10 minutos de conversa, por qualquer motivo banal.
Nunca duvidei que amo meu marido, mas como ele é serviço essencial, descobri que amo esse homem como um bolsonarista ama o Bolsonaro, cegamente!
Passei a dar mais atenção às séries que paro pra ver. Comecei a dar mais atenção ao que me apresenta no quadro da janela. Diminui o consumo de café de uma maneira que nunca imaginei diminuir, só bebo 100 ml por dia, antes, bebia cerca de 2 litros. Fiz promessa, não foi pra nenhuma divindade, mas pra mim mesmo, de não beber até o fim da pandemia. Estou indo bem!
Hoje, no banho, me coloquei a pensar no que posso usar, de tudo que sei, pra ser útil depois da pandemia, já que há previsões catastróficas. Conclui que não importa o quanto de saberes ou coisas que você tem pra doar, num momento assim, mas a força está no quanto você doa daquilo que você sabe ou tem...
Entretanto, tudo isso não é pra panfletar bem-estar. Não é pra mostrar que existe beleza em meio ao caos e que você precisa enxergar. Porque todo dia, em algum momento, eu choro!

Adelmo, o elefante indiano ou O drama da verruga pensante


Um elefante indiano, que para o dia do Festival do Elefante de Jaipur, Índia; estava muito bem decorado com joias, cores vibrantes e um jhool maravilhoso em sua sela, um dia, viajou no tempo pela consciência.
 Mas, invés de sua consciência se manifestar numa realidade mais adequada e mais propensa a lhe fornecer vivências e experiências impares, ou confrontá-lo com costumes de uma cultura muito diferente da sua, o que aconteceu de fato foi que o elefante, que se chamava Adelmo, na verdade, foi parar em uma realidade mais monótona. E porque eu disse monótona, eu não disse inútil.
Adelmo não abriu os olhos, porque nessa realidade em que encontrou-se todo o seu corpo tinha uma dinâmica diferente ao enxergar. Ou seja, de alguma maneira diferente com a que os humanos, ou mesmo os gatos, estão acostumados a enxergar, esse corpo, que Adelmo habitava, enxergava por toda a sua extensão. Era como se todo seu corpo fosse feito da matéria que os olhos são feitos.
Após se perceber existindo, ali, naquele corpo. Adelmo tentou se mover, mas foi em vão. Então, Adelmo percebeu que seu corpo não tinha a possibilidade de se mover. Por isso, começou a utilizar a sua capacidade de enxergar por todo o corpo para entender onde estava e para que existia. Nesse momento, Adelmo ao menos agradeceu ao universo pela oportunidade de, ao menos, refletir sobre sua própria existência.

           Foi quando Adelmo viu algo firme e de forma, basicamente, cilíndrica vir em sua direção. Assustado, sua primeira reação foi tentar correr. Mas Adelmo não poderia correr. Pois já havia constatado que era, apenas, um corpo, aparentemente, inerte. A forma cilíndrica atingiu seu corpo esponjoso, pois nesse momento, o toque macio da forma cilíndrica lhe permitiu sentir que seu corpo era esponjoso! A forma cilíndrica o girou delicadamente. E se foi lentamente. Foi quando Adelmo percebeu que aquilo era um dedo humano. E foi quando olhou e percebeu que seu firmamento era a pele humana. Ele não podia enxergar para cima, nem muito ao longe das suas laterais. Portanto, não conseguia saber o sexo do humano ao qual estava preso. Tal como, também, não conseguia ver o rosto desse humano. Foi, só então, que Adelmo, o elefante indiano, finalmente, decidiu olhar para si mesmo. E, assim, aconteceu: Adelmo, viu quem era e descobriu onde estava.
A consciência do elefante estava habitando o corpo esponjoso de uma... verruga! Céus! Adelmo se viu inerte. E percebeu o quanto estava tolhido de tentar mudar o mundo. Ele se lembrou da sua função, na sua realidade, na Índia, e percebeu o abismo de utilidade que havia entre ser um renomado elefante decorado do Festival de Elefantes de Jaipur - o que de fato valorizava o seu cultura e a propagava para o mundo – e sua realidade como verruga, que até aquele momento, parecia-lhe tão inútil ao mundo.
Adelmo, então, começou a se questionar e criar lógicas a respeito da sua existência como verruga. Ele pensava que uma pinta poderia ser considerada ornamentaria num humano. Sardas são sempre ornamentarias. Pouca pessoas sofrem de transtornos obsessivos relacionados à própria pele ao ponto de desejarem retirar pintas ou sardas. Assim, em grande maioria, as pintas são ornamentais, no humano!
E ele continuou a explorar seus pensamentos e sua existência. Adelmo era, nesse momento, uma verruga existencialista. Em seu pensamento surgiu a função e o lugar-no-mundo das dermatites, sobre tudo as com formas vulcânicas, como as espinhas e furúnculos. Todas são inflamações da pele, que podem ser benéficas por estarem fazendo a manutenção do corpo humano ou, mesmo que maléficas, ao menos apresentam uma anormalidade no organismo. Pensou nas cicatrizes: essas podem ser feias ou bonitas, mas ao menos são formas que surgem na pele graças a um processo de sobrevivência. Mesmo que doloroso, se cicatrizou, ao menos significa que sobreviveu!
Mas uma verruga? Qualquer pesquisa rápida no Google permitiria Adelmo saber que, na verdade, uma verruga é inofensiva, na maioria das vezes, e pode ser curada em poucos meses. Além disso, nem sempre uma verruga incomoda um humano, algumas vezes, elas são marcas de estereótipo, como a verruga nas bruxas, por exemplo. E, alguns humanos, passam a vida ignorando verrugas que aparecem próximas ao seu nariz, mesmo que não as considere ornamentais.
Adelmo estava inerte, mas mesmo assim cansado. Seus pensamentos estavam a mil e sua cabeça doía. Era como se o mundo girasse ao seu redor e ele tinha, por alguns instantes, a sensação de um ataque de labirintite, mesmo que, como uma verruga, sequer tinha um labirinto para tal. Então, Adelmo pensou na sua inutilidade, no seu corpo esponjoso firmado numa pele humana e vagando tão minúsculo e insuficiente no universo infinito. Pensou que estaria sendo carregado a qualquer lugar sem a sua vontade. Percebeu, através de um pensamento assustador, que era melhor que voltasse para o TODO e tivesse seu pensamento preso no Éter, onde, mesmo que não fosse ele mesmo, ainda, era ele, mas com a utilidade de ser uma experiência adquirida pelo cosmo. O que afinal servia sua existência naquele momento? Ele sentia falta de ser um elefante decorado do Festival de Elefantes de Jaipur.
Os dias se passaram e Adelmo estava cada vez mais introvertido. Afinal, não tinha sequer uma pintinha próxima a ele para que ele pudesse puxar assunto, talvez, comentar sobre o calor. Assim, cada dia mais a depressão acometia a consciência de um Elefante decorado de Jaipur. Cada dia mais, ele se sentia apenas um pedaço de carne esponjosa a vagar inerte pela imensidão do universo.
Até que um dia, Adelmo sentiu um dedo lhe tocar outra vez. Então, sentiu que esse dedo não era tão macio quanto a primeira vez que foi tocado nessa realidade. Era uma textura plástica. Adelmo, perspicaz, então, percebeu: era o toque de uma luva de procedimento médico. Um frio lhe percorreu seu corpo. Era o prelúdio do que viria acontecer.
Um objeto frio encostou em seu corpo e tão logo Adelmo sentiu um filete de sangue escorrer por toda sua extensão esponjosa. Sábio como um elefante, ele soubera que naquele momento era retirado para sempre do firmamento que vivia, era um procedimento de remoção de verruga. E no seu mental choro derradeiro, Adelmo, que nunca mais retornou a sua consciência de elefante decorado do Festival de Elefantes de Jaipur, conseguiu apenas ter um pensamento: Uma verruga, embora banal, pode ser o sintoma silencioso de um HPV.

O Corpo

Quando você recebe uma notícia dessas, ou quando seus olhos correm por todo o cômodo até, ironicamente, morrerem sobre o fato já consumado  pela vida, há de sentir como quando se enfia o dedo na tomada, ou quando a pequena ferida indolor, sob a água do do chuveiro elétrico, cria um pequeno pico de susto. 
Também, se parece com a doentia sensação de ver o amor da vida sair pela porta pra nunca mais voltar - deve ser o que o cachorro abandonado sente, quando se vira e percebe que o dono deu partida no carro sem o convidar pra entrar.
Em outras palavras, quando os olhos morrem sobre o corpo morto no meio da sala, ao pé da escada ou no corredor que leva ao lavabo, o coração para por um instante, é como se o sangue bombeasse um só pulso gelado e espalhasse o frio por todas as veias. A respiração volta e você deixa correr o fluxo pelo corpo, o cérebro recebe o oxigênio outra vez.
Nada parece tão terrível, é como se não tivesse acontecido. Talvez a sensação de gelo correndo pelas veias seja isso: um sangue frio pra suportar a dor. E o primeiro dia passa!
Mas os dias que se seguem pedem pra serem vividos e você precisa abrir a mesma porta que ele quebrou a chave no verão passado. Você precisa abrir o guarda-roupas e escolher a camisa violeta, que ele te deu no primeiro ano, você precisa tomar banho mas teme tirar a sujeira que o corpo deixou em sua pele. O sabonete ainda tem um pêlo que não é o seu. As bactérias da escova dele ainda estão ali. 
No mês seguinte, quando você puxa o lençol, vem fotos de 2002. Na gaveta, cartas, desenhos, cartões... ele guardou tudo!
O primeiro dia é como apertar a mão do palhaço e levar um choque, parece que a vida continua, mas nos dias que seguem parece que a vida acabou não só no corpo que à cova foi em egresso, mas sua vida também parece acabar...

Isso, também, passará.

Na vida, tudo tem começo, meio e fim.

Embora tenhamos dificuldade em nos desprender das coisas, com o tempo, não tem jeito! É necessário se acostumar com a sensação de desprendimento - e eu não disse perda.

Temos dificuldade de nos libertar de pessoas que amamos e nos faz mal; de empregos ruins, mas que já nos acostumamos; de uma roupa velha; de um amigo vampiro e, até, do cocô, na primeira infância.
Portanto, imagina se desprender de algo que sempre foi bom e fez bem?

Desde 2006, ainda no domínio do site Uol, o blog Espaço Zero teve presente na blogosfera. Dois anos depois, teve seu domínio, aqui, no Blogger. Onde mais de 500 textos foram publicados: crônicas, poemas, tirinhas, contos e críticas. Diversas pessoas que passaram pela minha vida foram tema ou inspiração dos textos, muita gente: Amigos, colegas, família, namorados, paixões e famosos, foram de alguma forma parte dos 10 anos de blog. Todos fizeram parte disso!

Além disso, é legal comentar que em períodos de grande divulgação e dedicação ao blog, ele chegou a contar com mais de 500 visitas por dia. Totalizando cerca de 15 mil visitas mensais. O que o levou a ser notado, ficando, em 2011, entre os 100 mais do Top Blog Brasil. E depois, descoberto por uma colunista do jornal local A Voz da Cidade. O que gerou certa projeção regional - Sul Fluminense (RJ).

Assim, com tal projeção regional, ao longo dos 10 anos de Espaço Zero, além d'eu ganhar vários amigos e leitores assíduos, tive a honra de receber dois prêmios de Blog do Ano, em cerimônia com troféus, através do jornal Olho Vivo, nos anos de 2013 e 2014. Por consequência, aconteceu um convite para escrever crônicas para o G1 - Sul e Costa Verde (RJ) - que durou dois maravilhosos anos de divulgação dos meus textos. E me gerou a oportunidade de conviver com pessoas incríveis.

Mas, 10 anos se passaram. O garoto, com tom juvenil em seu estilo, passou por muita coisa diferente. A pedra bruta que recebeu ao iniciar a sua vida foi lapidada, nesses dez anos, sobretudo entre 2013 e 2016. Sofreu as mudanças que queria ver no mundo. Matou o ser humano que antes viveu, ali, para dar vida ao novo homem. Por isso, ainda que o Espaço Zero seja parte da sua história. Ainda que muitas conquistas, sejam de sonhos, sejam de pessoas, tenham sido proporcionadas pelo Blog Espaço Zero. Em algum momento é necessário perceber que o tempo chegou ao fim.

Eu agradeço ao universo por ter me dado a oportunidade de viver o que eu vivi graças ao Espaço Zero. Esse nome estará eternamente tatuado no Éter, será para sempre um eco no meu coração, guardado com carinho. Mas, em 10 anos eu cresci, me tornei o homem que queria ser, conquistei o que precisei conquistar. Tenho aprendido cada dia mais o que vim aprender. E percebo tão claramente que essa é uma nova Era. Uma nova etapa. Um começo.

Além disso, quero agradecer a todos que me proporcionaram sentimentos, bons ou ruins, mas que de alguma forma foram transformados em textos e publicados no Espaço Zero. Que vocês tenham a melhor vida. Os melhores sonhos e transformem o mundo para melhor. Contribuam!

Aqui, nessa nova página, nesse começo, eu mantive dez textos que escrevi, ao longo desses 10 anos, para que uma parte do que foi, ainda permaneça no que é.

Com a alma leve, dou adeus ao meu melhor amigo, em 10 anos! Eu amei estar com você. E sou muito grato por todo o peso que tirou do meu coração.

Obrigado!

A Abnegada

   Pá! - essa é a onomatopeia perfeita pra iniciar a minha história. Pois foi com um tapa no Botão de Transição de Realidade que tudo começou. Mas que, também, terminou. O meu início será para sempre o meu fim. E a culpa - diferente do que você pensaria que eu ia dizer - eu acho que é do meu criador, sim!!!
   Eu estava, lá, no que seria a última chance de uma vida perfeita, o suor escorria pela têmpora, o cabelo cacheado colava um pouco no rosto, os olhos ardiam um pouco, mas a adrenalina anestesiava. Corri em direção contrária a dele e Pá - a tal onomatopeia aconteceu - foi quando me dei conta:
- Oi, meu nome é Miranda. - Eu respondi, naquele dia ensolarado, no suburbio classe média A... Usava meias até o joelho e saia xadrez de prega. Uma brisa suave fazia meus fios dos cabelos passarem em frente aos meus olhos. Eu sorria rasgado na construção dessa cena, eu estava numa realidade fantástica, em que nada surreal - nem mesmo a necessidade de ser uma heroína - me acometia. As sardas no seu rosto, seus cabelos ruivos, o sorriso estranho e a expressão corporal de quem parecia, ainda, aprender a lidar com o corpo humano, me faziam quere-lo para sempre em minha vida e que isso era o certo.
- Oi, Miranda, sou filho de um fã do Elvis... Elvis! É... é meu nome... - Ele olhou pro chão com timidez e então o sinal da escola soou, nos perdemos pelos corredores cheios de crianças, mas com a certeza de que nos veríamos no recreio. O que não aconteceu devidamente!
   Fui ao banheiro em meio à aula. Enquanto retocava meu batom vermelho, vi através do espelho um homem muito maltratado sair de um dos reservados dos vasos, por trás de mim. No rosto a expressão de pavor e agonia, um sorriso perturbador, um olhar perdido. Falando, efusivamente, para que eu o ajudasse, enquanto carregava um objeto branco, extremamente branco, que lembrava um botão, mas era como um botão a flutuar. Ele dizia de uma maneira perturbadora que já não sabia mais o que fazer, mas que só precisava que eu apertasse aquele botão, para que ele ficasse em paz consigo mesmo. Coloquei uma mão sob o objeto, que deveria ter uns vinte centímetros, e com um grande tapa bati sobre o botão. Foi o primeiro Pá, mas também o último. A sala brilhou em branco, o homem ria aliviado e dizia boa-sorte repetidamente. Me virei com violência para olhar para a porta de saída do banheiro, mas me deparei com meus cabelos envolvendo meu rosto, devido a força do giro. Era o meu reflexo no espelho, nesses segundos, meu reflexo desaparecia.
   Olhei ao meu redor, já não era o banheiro da escola, eu já não era uma menina de colegial. Era madrugada e vi luzes piscando, eu estava numa rua de boates e bares. Olhei meu reflexo, mas já não era eu, cabelos curtos, maquiagem leve, vestido rodado, uma mulher madura com um visual romântico, essa era eu (?). Caminhei pela rua fingindo entender o que estava acontecendo e então ouvi:
- Miranda! Aqui... - Me virei em direção ao bar e quando olhei pra mesa, vi sardas naquele rosto, cabelos ruivos, o sorriso já não tão estranho e a expressão corporal dessa vez, muito despojada. Sorri e fui em sua direção, me sentei à mesa. Era mesmo o Elvis. Mas, de perto, vi seus olhos fundos, estava muito magro, olheiras, cheirava um pouco mal...
- Miranda, acho que dá pra notar o porquê marquei contigo aqui. - Ele olhou em volta com desconfiança e prosseguiu - preciso de grana pra comprar mais... - Eu o interrompi:
- Elvis, que porra é essa?! Quando você começou com isso?...
- Não se faça de boba: Colegial... você foi pra sala, eu pra minha... recreio... eu aceitei, você não... eu fiquei, você deu as costas... e, naturalmente, cheguei aqui... - Ele pausou e prosseguiu com tom melancólico - Você fez o certo! A propósito, como está o Enzo?
- Desculpa, eu não tô me sentindo bem... estamos falando de quê? - Eu não sabia quem era Enzo. O viciado apontou pra TV do bar, ao fundo um reporter dava uma notícia qualquer sobre a cidade. Então Elvis prosseguiu:
- O maridão, po... - Ele riu debochado - Que parada é essa que você tá usando? Divide...
   Eu me levantei e sai andando sem rumo, ao fundo escutava Elvis gritar pelo meu nome desesperadamente. Eu não sabia o que estava de fato acontecendo, mas meu inconsciente me levava para algum lugar. Oh, céus! Era a minha casa.
   Eu entrei no apartamento e encontrei uma cafeteira, enquanto o café ficava pronto, ouvi a porta se abrir. Como quem vive de maneira mecânica, sem mandar as informações de maneira clara, peguei a caneca com café, o qual nesse momento já estava pronto, pousei uma das mãos no portal da porta e fiz um movimento de meia-lua em direção a porta de entrada. Meus olhos congelaram, meu coração se preencheu de algo que não sei definir, a consciência dizia o quanto eu amava Enzo, as memórias de toda a nossa história feliz e bonita passaram por instantes pela minha mente. Era ele o cara! Enzo era o amor da minha vida.
   Conversamos, eu estava mais calma. Enzo perguntou como tinha sido meu encontro com Elvis, relatei. Então, eu disse que se não fosse Elvis se tornar um viciado, meio bandido, talvez, ele seria o par perfeito na minha vida. Enzo me disse que eu deveria tê-lo orientado ainda no colegial. Assim, tudo fez sentido: Eu virei as costas e tudo mudou. Eu estava feliz e relizada, mas como eu poderia ficar satisfeita com aquela realidade, em que eu estava, se eu havia destruído a realidade de Elvis. Corri para o quarto como num surto, eu sabia onde estava o Botão de Transição de Realidade. Mais um Pá.
   Eu estava no pátio, uma amiga dizia ao longe:
- Miranúltima chance de uma vida perfeita, o suor escorria pela têmpora, o cabelo cacheado colava um pouco no rosto, os olhos ardiam um pouco, mas a adrenalina anestesiava, corri em direção contrária a dele e Pá - a tal onomatopeia aconteceu - foi quando me dei conta:
- Oi, meu nome é Miranda.da? Miranda? Qual é? Tá viajando aí, por quê? - Eu estava chegando com a consciência de agora e tomando o lugar da consciência antiga. Era eu outra vez, não sendo quem fora. Corri para trás da escola, puxei Elvis e disse que me casaria com ele no futuro se ele jamais usasse qualquer coisa. Logo depois, o beijei. O garoto saiu encantado comigo, eu acenei e fiz que iria para a minha sala, corri para o banheiro. Eu, agora, estava com saudade de Enzo, o amor da minha vida. Mas, quando bati no botão, senti o coração se apertar com a falta que sentiria de Elvis.
   Abri os olhos, na cama, senti o corpo do meu amor ao me lado, ainda dormindo, me virei para ele e o abracei, ele despertou, se virou para mim e sorriu: as sardas, o cabelo ruivo e o sorriso, agora, já não era estranho. Era Elvis! Ele não disse nada, ficou me olhando no fundo dos olhos em silêncio, um silêncio constrangedor. Eu pensei em Enzo, então, pensei que não o conhecia, busquei na memória da realidade a qual me encontrava agora, mas nada de Enzo. Um sentimento apavorante me bateu, uma mudança no passado e alguém já não faz mais parte da minha realidade. Percebi, que se eu voltasse no momento em que conheci Elvis, talvez, consertasse tudo. Portanto, senti as mãos suarem frias, a barriga se embrulhava, a sensação de náusea, tudo girava vertiginosamente e Elvis me perguntou qual o motivo dos meus olhos estarem perdidos. Percebi que eu estava tomando a expressão do homem que me entregou o botão. Entendi que para eu me livrar desse ciclo, eu deveria passar o Botão de Transição de Realidade para alguém. Elvis se sentou na cama e começou a me questionar se eu estava bem, se levantou em direção ao telefone dizendo que chamaria um médico.  Eu estava, lá, no que seria a

O gamer

Não é sobre o cara do dia dos namorados. Não vou falar do grande amor da minha vida, das viagens compartilhadas ao seu lado. Não tem vidros embaçados numa madrugada longa, não tem filmes repetidos numa madrugada fria. Não é sobre delicadeza e doçura. Não vou falar da diversão que foi andar lado a lado, abraçar apertado por horas pela manhã, esse texto não vai citar o mal hálito matinal que nunca atrapalhou, porque com ele não há nada disso. O cara desse texto não é o mesmo em que falo das borboletas no estomago. Também, não é o cara que senti falta na mesa do jantar.
Estou aqui pra falar dele. Mas ele não é o cara que tinha outro cara. Não é sobre aquele que chegou atrasado e marquei pra em outra vida a gente se encontrar. Não é fruto de uma ficção de um filme pouco divulgado, nem de um livro nerd que eu li no passado. Ele não é nada disso. Pra falar a verdade, ele também não é aquele mentiu e eu fingi acreditar, não é o que me tocava como a luz do sol, porque na verdade não conseguia me atingir. Ele não é nada disso. Ele não é um cara com quem de fato eu estive. E quando olho pra memória como se ela fosse um slide em preto e branco, percebo o filme queimado e não consigo lembrar de nenhum instante: Parece até que a gente nunca se viu antes, não tenho uma história engraçado pra contar, não sei qual sua ideia sobre as inscrições "Jesus Salva" na altar. Eu nunca perguntei nem o seu último nome, não faço ideia de como ele pega os talheres enquanto come, se passa o sabonete de cima pra baixo, se joga a toalha na cama do quarto, se quando vê série grita alto, eu nunca vi um cílio colado na sua bochecha, nunca falamos sobre cães e gatos, nem compartilhamos um mesmo copo de cerveja...
Definitivamente, ele não é nada palpável, e, normalmente, nem se tornaria um texto. Mas é que o perdi em minha cabeça, prendi numa parte e não sei mais onde está, então aceno nos sonhos pra que me veja onde quer que eu esteja. Enquanto ele passa como garçom apressado por trás da cadeira. Ele é o cara que poderia ser um texto inteiro, um livro completo, mas insiste em me fazer escrever sobre séries e os outros e prosseguir sem entender nada.

Memória Pirata

Todos os dias, depois do almoço até a hora do café da tarde, Dona Madalena contava a mesma história para Seu Rodrigo. O casal se sentava na varanda, que dava para um lindo jardim extremamente florido e muito bem cuidado, com borboletas, que pareciam permanentes naquele cenário, e enquanto Seu Rodrigo balançava na cadeira, Dona Madalena mexia nos fios de cabelos brancos que ainda insistiam em permanecer em sua cabeça. Mastigava a saliva e começava:
- É, Rodrigo, a gente viveu uma linda história, você não acha? – Ele a olhava todos os dias com o mesmo olhar de incerteza, com a mesma expressão blasé, quase como se não a enxergasse tão completa, como se visse uma desconhecida. – Além das nossas aventuras sexuais, da gravidez antecipada, daquela paixão de espírito adolescente que vivíamos, você e eu vivemos uma história de amor de verdade... Lembra como você cuidou de mim quando quase morri de pneumonia? – Madalena olhava para as borboletas do jardim num silêncio quase constrangedor, como se quisesse ter a força da juventude pra dançar entre as flores enquanto Seu Rodrigo a observasse. E Seu Rodrigo quase se perpetuava no silêncio, que pra ele era confortável. – Além disso, você lembra o quanto você se saiu bem na sua vida? Lembra do seu primeiro livro?
- Livro, que livro? – Finalmente se pronunciou o velho.
- Ora, por favor, você sempre amou escrever – Seu Rodrigo pigarreou, olhou pro lado e respondeu.
- É verdade! Escrever foi a minha maior paixão nessa vida. – Seus olhos dessa vez brilharam.
-Sim, vendeu mais de cinquenta mil exemplares. Você foi convidado por diversos meios de comunicação para escrever textos... Não me esqueço da festa de aposentadoria que te fizeram. Mas, a coisa mais linda que fica na minha memória é... – Ela se levantou como se estivesse animada, pois, com a idade que tinha nunca se sabia quando estava animada ou ofegante, depois foi em direção a parte de dentro da casa enquanto prosseguiu dizendo – Espere um momento, vou pegar uma coisa. – Voltou no mesmo ânimo, aquele que num da pra saber se é animação ou fadiga, por conta da idade. Ergueu um troféu no formato de livro e disse: - Olha, o dia que você ganhou isso não sai mais da minha memória, o prêmio de melhor livro. – Dona Madalena aproximou-o de Seu Rodrigo e o mostrou bem de perto, passando o indicador rapidamente sobre o nome gravado no troféu: Rodrigo Rabelo Reno Roma do Rego. Seu Rodrigo encheu os olhos d’água e olhou para o lado como se engolisse o choro e engoliu, nenhuma lágrima escorreu, ficaram nos olhos, parecia que era brilho da catarata, mas era emoção oprimida. Então, depois de respirar fundo ele disse:
- Como a vida passa rápido, Madalena! Nem consigo sentir mais a emoção daquele momento, sinto apenas algo parecido com orgulho.
- E isso já não é o bastante?
- Claro que é, deixei o meu nome, ao menos tenho um legado nessa terra! – Dona Madalena evitou tocá-lo.
- Vamos, Rodrigo, hora do café! Acho que ainda tem bolo de cenoura.
Rodrigo se levantou com dificuldade e entrou para o interior da casa.
Dona Madalena cruzou os braços, ouviu os pássaros e foi abordada por uma moça linda, que vestia branco:
- Acho linda a forma com que trata o Seu Rodrigo, Dona Madalena. Mas, num sei se é bom pra ele o que senhora faz todos os dias.
- Ele é meu amigo desde o berço - Dona Madalena pausou por um instante, respirou fundo e prosseguiu - num casou, num teve filhos. Xará do meu falecido marido, mas nunca teve a mesma sorte, coitado. Passou toda uma vida embriagado pelas ruas do Rio, pedindo até esmola, e frustrado por não se consagrar como escritor... aliás, por nem ter lançado um livro. Merece agora, que não se lembra de nada, conhecer uma história nova e boa de sua vida, ter uma memória que valha a pena ser revivida... - Dona Madalena se despediu e sua silhueta morreu no breu do interior da casa, onde foi desfrutar do bolo de cenoura.
A mocinha, ainda inspirada e um pouco confuso, riu com vontade de chorar e pensou: - Ai, quando eu ficar velha não quero usar roupas floridas como as da Dona Madalena. - A tentativa de intervenção da moça de branco não importava. Importava mesmo era que, pelo resto do dia, o velho se colocaria a escrever coisas que provavelmente jamais seriam publicadas. Enquanto se lembrava do quanto fora feliz...

D'AUMON