A criança, o moço e o ancião

 

O tempo passa, entretanto só porque o marcamos. Pois quando olhamos pra dentro, com atenção e sem medo de mirar o abismo, encontramos a criança, o moço e o ancião em volta da mesma fogueira, todos acrescentando lenha a ela ao mesmo tempo, não no nosso tempo.

Cabe a nós administrarmos uma conversa franca entre eles, com a qual todos ganham, mesmo que precisem ceder... a criança o amor negado; o moço o perdão; o ancião a paz. Seja parte do problema: a dissolução!

Espaço Zero

 


Tbt: o ano era 2013. Há dez anos, eu estava tentando...

 Essa foto poderia ser motivo de constrangimento, eu poderia reproduzir falas de padrões humanos muito repetidas, inclusive por escritores memorialistas, tais como "eu assassinava a moda nessa época"; "quanta inocência existia nele"; "esse cabelo ridículo" etc.

Mas como amante do contrassenso o que tenho a dizer é: como ele era admirável! Estava usando roupas e estilo muito comuns ao seu período. E essa foto de divulgação foi genial pro tempo e lugar em que ele estava. Isso, porque era 2013 e ele tinha um blog de textos AUTORAIS e experimentais com um engajamento monstro. E invés de se acostumar com a situação, viu a oportunidade de melhorar: fez fotos profissionais, investiu tempo e aprendeu a criar layouts com noções em HTML... levou o projeto Espaço Zero pra outro nível...

O engajamento aumentou muito, foi parar em coluna, ganhou 3 prêmios por 3 anos consecutivos... Até frase viral tem. De vez em quando ainda vejo um desconhecido compartilhando. Kkkkk

Não me orgulho tanto da frase, mas gosto dela. Há um quê de sagrado. Ela é a resposta antes da pergunta, como tantas outras que tive. E como tantas outras respostas que estou dando pra perguntas que ainda serão feitas...

Enfim, o Espaço Zero foi desativado em 2017, encerrando um ciclo glorioso desse artista. Mas guardo essa etapa da minha vida com carinho, amor e sabendo que está tatuada no Éter por toda a eternidade.

Foi preciso deixar pra trás essa fase, porque, QUE BOM, a gente muda. E quando a gente muda, o mundo a nossa volta implora por mudança, cada detalhe do que está em torno de nós é uma extensão do nosso ego personalizando a realidade e a maneira como queremos ser vistos. O Hugo, o garoto da foto, teve uma vida linda. Dançou no fogo sem saber, mas fez um espetáculo glamouroso. Entretanto, seu tempo chegou ao fim, foi velado, cremado e estará para sempre em nossos corações. E com ele e através dele nasceu uma nova pessoa, que propõe coisas diferentes e de maneiras diferentes...

Fica de olho! Ou você vai perder a melhor fase, a emersão... 😉

Uma Ilha



Arte: D'AUMON

Cada vez mais ele se sente uma ilha flutuante, não de areia, um monstro marítimo solitário boiando com seu ecossistema completo e saudável e olhando pro fundo profundo. Não enxergando os peixes, nem se aproximando de uma costa qualquer, ele bóia sem rumo num redemoinho gigante que devido a sua pequenez comparável, ele nem sabe que existe!


O Monstro na Árvore de Natal

 


As luzes cintilavam. Ainda assim, os duendes coloridos que estavam pendurados entre bolas e laços na pequena árvore de Natal, a qual estava no canto da sala do apartamento metropolitano, se vangloriavam de serem mais aprazíveis aos olhos do que a pequena miniatura de zumbi, essa que ficou presa no pilar de plástico das folhas artificiais. Isso desde o último ano, quando as quinquilharias de festas se misturaram no fundo do armário escuro.

Os risos sarcásticos ou olhares julgadores denunciavam a presença alienígena no recinto:

"Esse tom de verde na pele putrefata, não é o correto!"  - Soltou com tom de deboche um dos duendes de pele verde, mas um verde que comunicava esperança, acolhimento... era elegante! Natalino!

"Sim! Qualquer pessoa com senso de arte sabe que o verde no tom errado lembra morte" – Complementou o amigo com a pele verde refletindo as luzes de Natal que tomavam a sala de estar.

Ao fundo, gargalhadas estrondosas e estridentes de duendes iluminados compunham o tom do diálogo...

"As luzes são fascinantes..." – Até que soou a voz rouca, sombria e com tom de dor, vinha de perto da base de plástico. Continuou - "...na meia luz e piscando, até que disfarçou o tom triste do verde musgo da minha pele... estou quase me passando por um de vocês"

Uma oclusão de gargalhadas de duendes se manifestou por toda a sala. Os anjos de Natal pendurados na janela se viraram assustados pra tentar entender a situação, mesmo que tenha sido em vão.

Até que um duende despencou do alto da árvore. As gargalhadas cessaram instantaneamente! Todos os outros se contorceram na tentativa de compreender o que havia acontecido. Apenas alguns olhares dos curiosos alcançaram o duende que quicou sobre a mesa de vidro e rolou até a sua beirada, ainda zonzo com a queda, não teve forças pra pedir ajuda. Antes mesmo que começassem a especular, uma voz rouca e forte ecoou por toda a sala:

"Se mais algum de vocês rirem, o mesmo acontecerá... mesmo que seja um a um... todos irão!"

O silêncio sepulcral, tal como num funeral era acompanhado de fungadas de narizes chorões. O último duende ao pé da árvore pode ver urina escorrendo perto de si. Alguém acima não se conteve de medo!

A voz rouca e forte prosseguiu: “Não admito esse tipo de atitude na minha árvore” – a voz anciã vinha do topo, bem próximo da estrela – “Quando chega janeiro, vamos todos juntos para o armário escuro, nossos gorros natalinos se misturam a morcegos, serpentinas e cestos de ovos de páscoa...”

Papai Noel, do topo da árvore, com a sabedoria anciã liderava seu reino. O silêncio sepulcral voltou a tomar a sala, entretanto, os narizes chorões foram substituídos por olhos arregalados e reflexivos...

“Como se chama?” – Perguntou um dos duendes se virando para o zumbi.

“Como era, na caixa de Halloween?” – Outro duende arrependido tentava interagir.

“Meu nome é Regis... ah, era interessante! Lá, eu sou como o Papai Noel é por aqui... e... conversávamos sobre tudo, mas o que mais comentávamos era sobre a beleza que vocês trazem em dezembro. São muito admirados por lá... uma inspiração para o nosso trabalho em outubro...”

Papai Noel piscou para Regis, enquanto todos os duendes ficaram cabisbaixos. Notaram que só olhavam para as luzes de Natal! Não enxergavam a beleza das luzes alheias as suas realidades...

Graças a Regis, entenderam que quando chegasse janeiro, as quinquilharias de festas se misturariam outra vez no fundo do armário escuro...


D'AUMON




O Obituário




Nascido em Volta Redonda, no mesmo ano que a Constituição Brasileira, sob o signo de Escorpião, ele seguiu a luz no fim do túnel... Não pela primeira vez, hoje, morreu Hugo D., que conhecido através de vários nomes, conscientemente, confundiu a audiência. Esta que sempre se questionou da origem da sua segurança, sem compreender que é preciso morrer muitas vezes para tal...

Foi professor e escritor, mas acima de tudo, artista. A sua obra mais importante até o momento foi exposta durante seus 33 anos ininterruptamente, entretanto somente as pessoas mais atentas a conseguiram enxergar. Amante do contrassenso, buscou se expressar sob os auspícios de técnicas e estilos considerados vulgares ou populares, mesclando conceitos simbólicos elitistas para confundir quem o assistiu. Não para só construir, ele veio também pela destruição! Pois sobre a base do que já existiu, uma nova construção se torna instável.

Casou-se, não só com o marido! Criou, mas não foram apenas gatos. Morreu, mas continuará para sempre vivo. Virou águia no céu a enxergar um pouco melhor.

Que vá em paz! Orgulhoso de toda Arte que conseguiu fazer...

D'AUMON


Informação Privada

 

Composição da imagem: D'AUMON


Esse contato só é possível porque você morreu! Digo, provavelmente! É que também existe a possibilidade de ser uma EQM; ou um sonho lúcido; ou de um escritor sul-americano ter alcançado, através do contato com o TODO, as minhas ideias e, mesmo sem consciência disso, decidiu transmiti-las pra você!

Whatever, eu quero que você fique em paz, respire, diafragmaticamente, três vezes e entenda que a morte não é o fim. E se ela não é o fim, de alguma forma isso significa que você não sabe se está morto ou vivo... entende?

Não precisa ficar acanhado, vocês não conseguem lidar com facilidade com algo que não seja humano, não é mesmo? Relaxa e curte o momento. Nós somos da mesma energia, estamos aqui dentro desse mesmo propósito... É muito goodvibes nossa relação...

 Tô tão por fora desse papo de deus quanto você. A gente também é uma energia manifesta sem clareza de onde se oriunda. Imagina o que é isso! Vagamos por essa infinita highway, cercados de matéria escura e coisas explodindo, sem saber se estamos na direção certa.

“Vagamos” não é sobre você! Sossega. Falo de mim e dos outros iguais a mim, que tem em si outros semelhantes a vocês.

A gente não é VIP, honey. Estamos num mezanino do universo de onde é possível apreciar o show, mas não rola um meet and great com o todo Poderoso, ou Poderosa, ou Poderose!

De qualquer forma, o que precisa ficar claro é que Maia não é um nome presente na lista de credenciais pro backstage... Ah, eu divaguei por muito tempo, né? – Maia sou eu!

O negócio é o seguinte: vim contar duas pequenas historinhas pra você, pra exemplificar o que acontece com a humanidade. Vocês estão sempre se perguntando o que rola pras vidas de vocês serem tão complicadas como são. ..

Tudo começa em mim! Eu me entendi como um Ser igual você quando tinha sete anos. Foi quando decidi que criaria tudo isso que vocês enxergam, sentem, vivem... e o cara lá de cima decidiu que vocês poderiam ter essa coisa de livre arbítrio. Fui relutante a ideia, mas como não tenho acesso ao big boss, eu fico por aqui mesmo, fazendo meu trabalhinho e conjecturando as ações do chefe junta aos outros, lá na mesa do cafezinho.

Conclusão, precisei pensar em como usaria essa coisa de livre arbítrio no meu enredo. Tive uma ideia GÊ-NI-AL, tanto que o ser todo poderoso nunca interviu nisso.

Presta bem a atenção nisto: Na Terra há um rodízio de pessoas pra desentupir a privada por dia. Isso mesmo! A cada dia um número específico de acordo com a matemática do “foda-se! eu que escolho” são submetidas ao processo e suas privadas entopem. Elas precisam desentupir pros eventos continuarem seu processo natural...

Vamos entender o efeito catastrófico de pular a sua vez na hora de desentupir a privada. Temos essa pessoa X – Isso não traz o tom lúdico necessário – Essa é a Velma: uma garota brasileira de 27 anos, ela gosta de Legião Urbana, mas não interrompe o churrasco com o violão. Aliás, ela não sabe tocar violão. A Velma nasceu num subúrbio de classe média, em outras palavras, ela nasceu num ambiente pobre, não teve muito tempo pra estudar música. Ela se formou em T.I.

Velma veste muito a cor rosa, mas gosta mais de laranja. Entretanto, acredita que o laranja não combina com a sua pele. Ela não gosta de decotes e só usa tênis. Já viu cinquenta e quatro vezes o filme Club da Luta. E costuma ler no ônibus.

Velma tem um salário muito especial. Ela não precisaria de ônibus...

Por que a Velma anda de ônibus, Maia? A resposta é simples!

Velma desentupiu a privada sempre que foi a sua vez. Ela conhece a realidade dura. E por conhecer, sabe que existem milhares de pessoas espalhadas pela sua cidade com dificuldades de inúmeras naturezas. Assim, Velma percebeu que não precisa usar seu carro todo dia pra fazer um percurso em cinco minutos, quando na verdade, ela pode fazer de ônibus, mesmo que por dez minutos! Velma sabe os impactos ambientais e na mobilidade urbana que suas ações tem.

Parabéns pra Velma!

Todas as vezes que um pedaço de fezes saltou do fundo da privada em seu braço, Velma refletiu sobre o coletivo! O quanto é importante você limpar sua própria sujeira...

Agora, imagina você se Scooby pensasse assim. Seria perfeito! Mas Scooby é milionário. Nasceu numa família muito rica e não sabia que existia pobreza até os dezenove anos. Ele não gostava de arte, porque passava maior parte do seu tempo viajando... Scooby gostava de vestir roupas de grife. E não come queijo...

Quando chegou a vez de Scooby desentupir a sua privada, a coisa não rolou como um processo natural. Ele deixou de usar o seu banheiro particular por um dia, usando apenas o lavabo da mansão. Enquanto esperava por Fred, o jardineiro que da família, para desentipir sua privada! Assim, Scooby promoveu o Efeito Descarga!

O efeito descarga é quando você aperta um simples botão, ou puxa uma inocente cordinha e a água desce com seus excrementos pela tubulação. Um ato corriqueiro, para o qual você não desprende muito tempo de reflexão, mas que em algum momento desemboca no mar. Aí é o caos completo: chega coco, papel e muitos restos de comida; mas chega fio dental, plástico de toda sorte, óleo... é quando você percebe que uma quantidade pequena de óleo de uma dona de casa da zona norte do Rio de Janeiro, se junta em algum momento com a pequena quantidade de óleo de uma estudante de medicina, que mora numa quitinete no interior do estado. E o problema cresce...

Quando Fred chega em casa e reclama com sua família da desgraceira que é isso, Daphne, a sua filha mais velha, se revolta com a humanidade, gera em seu mais íntimo ser a vontade de explodir todo o planeta! Mas não é porque Daphne é má. Ela entende como é degradante o momento de desentupir uma privada mesmo sendo supostamente pago pra isso...

E mesmo não sendo a vez de Fred, ele foi obrigado a se ajoelhar e lidar com excrementos de terceiros, pra resolver um problema que não era o seu. Aqui, é a ruptura com o processo natural das coisas. Se Scooby aceitasse que era o seu lugar na fila pra desentupir a privada, Fred não reclamaria com a família sobre a bosta do Scooby, o que evitaria a explosão de ódio à humanidade em Daphne, quebrando todo um ciclo de horror...

Um ciclo sem fim! Daphne saiu aquele dia com muita vontade de lutar. Passou num posto de conveniência e decidiu comprar cigarros – mesmo que ela não fumasse – quando do banheiro do posto, Velma saiu com olhar de nojo, se encaminhou até o lado de Daphne e falou como um sussurro para a moça do caixa:

- O banheiro está entupido, não consegui nem usar...

Daphne, ainda com a explosão de ódio à humanidade em seu interior, teve seus sentidos ausentes. E toda a sua fúria saiu do coração e vibrou por seu corpo até o seu punho rígido. Essa energia ultrapassou a sua matéria e atingiu o olho esquerdo de Velma. A desenvolvedora de software caiu desacordada no chão, mas recobrara a consciência logo em seguida, ouvindo os gritos de Daphne:

- Larga de ser asquerosa, deixa de ser desumana! Você quer que a moça desentupa? Você sabe o quanto é horrível e degradante? – Antes de concluir o raciocínio, Daphne correu chorando em direção à porta e se foi.

Velma se levantou tonta e revoltada com a aparente injustiça cometida contra sua honra. Um homem a ajudou a se levantar, a carregou até a saída da loja de conveniência. No posto, ambos ficaram de pé, um de frente para o outro. O lusco-fusco criara uma silhueta romântica. O homem abriu uma cerveja importada e começou a beber, quando em um dos intervalos de suas bebericadas, atuadas com um charme forçado, ele disse:

- Essas pessoas são selvagens! A falta de educação nos leva a esses momentos de barbárie. – Ele pausou e mexeu no nariz tentando ser charmoso – Você já está melhor?

- Sim! Só queria poder ter revidado.

- Seja superior... isso é gente sem civilidade. Mas, me conta: O que rolou, afinal?

- Eu falei pra moça do caixa que a privada estava entupida... a garota me socou e me chamou de desumana...

- Nossa! Uma privada entupida? Que bobagem... por coisa pouca. Ontem mesmo, minha privada entupiu e, hoje mais cedo, o meu jardineiro foi, lá, e desentupiu rapidamente... – Velma estava tonta com toda a situação e não tinha paciência para um playboy. Ela se despediu e sua silhueta desapareceu no lusco-fusco do plano aberto descrito antes do diálogo. Enquanto Scooby colocou as outras garrafas de cervejas importadas em seu carro e seguiu para uma festa numa cobertura em Ipanema.

Fim!

Essas são as duas historinhas que te mostram como a vida poderia ser mais perfeita pra todo mundo. Entretanto, muitas pessoas como Scooby seguem pulando sua vez de desentupir a privada. O que nos traz a esse cenário caótico, em que por mais que remexamos nas estruturas que vocês mesmos criaram, não vemos possibilidade de organizar a coisa toda.

Esse é o segredo entre as Estrelas!

E se estiver mesmo morto, lembre-se de seguir a Luz, mas respeitando a ordem...

Beijos, Honey.

D'AUMON




O aniversário da covid-19



É possível olhar pro céu e enxergar a rachadura?

Deve ter alguém no mundo que consiga. Eu não a vejo com os olhos mas a percebo lá. É como o sabor do sangue contornando os dentes, a gente sente, mas não encontra a ferida.
A rachadura se expande em pequenos trincados, tomando todo o firmamento. Se você não a enxerga ou não a sente, a ilusão ainda pode ser superada, eu sugiro você olhar em volta, onde todas as coisas mostram como a rachadura cresceu.
Todo mundo tá morrendo de fome, de guerra, de peste... se qnd a gente tentava superar, ainda assim doía, agora, que desistimos, é como o fio de cabelo que prendeu no pente, dói num ponto da cabeça, mas a gente não sabe definir bem onde é. A gente disfarça o choro, porque parece exagero, a gente disfarça a dor, porque precisamos parecer fortes, a gente descabela o couro cabeludo, alucinados, buscando o ponto de onde o fio se soltou. Alguém diz "é só um fio". Mas a dor não deixa dúvida, perdemos o fio...
Tá doendo de dentro pra fora, um dolorido que faz ano, é a espícula da unha encravada cortando a pele: só se sente a dor quando aperta. Mas por dentro há infecção, muita infecção! E carne morta. Quem já teve sabe que dá pra sentir o cheiro forte da ferida. Não adianta negar o problema, a unha continua crescendo, rasgando, o fedor exala, a carne vai morrendo...
Ou arranca a espícula ou perde o dedo, o pé, ou até a vida... e a gente sabe o quanto uma vida é valiosa. Mesmo assim vai partindo todo dia mais de mil... 260 Mil em um ano... era possível arrancar a unha, era possível se preocupar com aquele fio, era possível ir ao dentista encontrar a ferida, a rachadura no céu era perceptível, bastava usar um bem valioso a vida humana: Amor.

Sinto muito!

D'AUMON

Vivendo em 2020

 Não houve o suspense angustiante do tic-tac do relógio, pois os tempos são outros. Mas houve outro suspense angustiante: Olhar em volta e ver as paredes no mesmo lugar, a tela de proteção da varanda, cortando a paisagem em pequenos pedaços, o sol fraco da manhã girando, em torno da casa, e morrendo, antes do meio dia, onde não mais me atingiria. O senhor de meia idade, ao longe, roçando, arando e plantando na pequena lavoura do seu quintal. A vida parecia continuar para algumas pessoas. Pra mim, também! Mas não parecia mais a mesma vida...

A luz fria da TV trazia números, os números, em minha mente, se convertiam em corações pulsantes, em vidas complexas, em combinações conflitantes de comportamento e escolhas, que constituíam milhares de indivíduos por aí... era como se uma parte pequena de mim morresse todo dia, mas uma parte tão pequena, que se eu chorasse alto, as pessoas me ridicularizariam. Era uma parte tão imperceptível, que mesmo que eu a olhasse com firmeza, ela me escapava aos olhos. Eu não tinha o que fazer, apenas me manter no luto, um luto silencioso, um luto solitário, um luto, igualmente, imperceptível.

Não bastasse os meus problemas particulares de classe média, lá estava eu, andando em círculos nos cômodos da casa. Assistindo em loop à How I Met your Mother e The new Adventures of Old Christine, na intenção de um sorriso me saltar no rosto. Fazendo exercícios de pouca perda calórica no quarto. Falando com meus pais pela tela do celular. Perdendo a mágica mudança do crescimento dos meus sobrinhos, dissolvendo os laços de amizade, antes, tão firmes...

Havia, apenas, um ano e oito meses que eu mudara de cidade. Uma cidade encantadora, que atrai muitos turistas e, com isso, parentes e amigos frequentavam com certa regularidade. Mas, sem carro, sete horas me separam de todos que amo. A cidade linda, não é tão hospitaleira, o mercado de trabalho é precário, quase inexistente. Então, eu já estava há um ano e oito meses conflituoso comigo mesmo e minhas escolhas. A virada do Tempo só veio para reforçar os meus conflitos...

Foi quando diante os resultados constantes de pressão alta, um cardiologista me encaminhou para acompanhamento psicológico: O luto silencioso continuou... mas a pressão voltou ao normal e eu tive chance de contemplar a escuridão. Não romantizá-la, mas consegui enxergar o potencial de transformação diante dos problemas: Mesmo diante meus problemas e os problemas do mundo, eu consegui transformar toda a dor em Arte: Meditei muito; escrevi 4 histórias que tiveram muitos leitores e avaliações;  e em prol das famílias trancadas com seus filhos, escrevi e ilustrei um livro infantil gratuito, o qual teve uma ótima divulgação e boa aceitação; além do que, tive muito tempo pra estimular e estudar ilustração, logo, saí de 2020 com um enorme avanço nas minhas técnicas e traço. Mas tudo isso foi apenas uma percepção de fora pra dentro...

Esse, também, foi o ano que eu descobri um objeto pontiagudo esquecido dentro do meu corpo psíquico. Levei mais que a metade do tempo, de quando ele foi fincado, ali, para conseguir removê-lo. Ainda não tenho tanta facilidade em falar sobre isso com qualquer um, mas os efeitos e a cura eu tenho dividido com muita gente. Acontece, que eu nunca soube de onde vinham as minhas neuroses, não conseguia explicar a mim mesmo como eu poderia pensar coisas catastróficas ou imaginar acontecimentos horríveis comigo mesmo, ainda que, racionalmente, eu soubesse que tudo era impossível. Foi quando descobri que minha mente criou esse mecanismo pra não me contrapor àquilo que eu realmente precisava. Assim, me vi diante do que fingia não existir... vivi uma vida inteira sob a sombra de que eu não tinha o direito de sofrer, pois existiam muitas pessoas em situações piores. E ignorei! Ignorei e fingi que não doeu cada agressão sofrida diante o que eu sou... Como tudo estava, lá, sem ter passado pelo sofrimento, retirar o objeto pontiagudo da psique, doeu. Eu tive uma semana de muita dor, os sentimentos eram revividos como se tudo tivesse acontecido recentemente. Mas, foi passando...

Esse ano, eu sei que é egoísta dizer, foi, individualmente, muito bom! É errado pensar que a dor deve ser evitada a qualquer custo. Analisando todos os anos da minha vida, talvez, esse ano, depois de ver pessoas ao redor do mundo enterradas em parques, morrendo em corredores de hospitais, familiares com corpos, em casa, esperando a retirada; depois de ver pessoas pobres caindo para a linha da fome; depois de ficar um ano sem ver meus pais, meus irmãos ou sobrinhos; depois de ter me infectado, logo no começo da pandemia; depois de ter perdido uma das maiores oportunidades de emprego da vida; de ter ficado cara a cara com meus monstros... bem, depois de tudo isso, racionalmente, esse deveria ser o pior ano da minha vida. Mas, quando você tira um caco de vidro que fincou na sola do seu pé, a dor não é ruim. Digo, o contato da carne exposta com o ar não é dos melhores, mas a leveza do corpo estranho se descolando da carne é alucinante, deixando tão só um dolorido no atrito... é a mágoa do estrago, que a medida que cicatriza, se torna prazerosa, até não doer mais.

Portanto, não quero transformar essa minha auto-análise sobre o mundo. O próprio termo já sugere a sua individualidade, mas se eu criei, atingi pessoas através da arte, se eu evoluí como artista e como ser humano, posso dizer que esse foi um dos melhores anos da minha vida

À deriva no sonho lúcido

 “Quando eu fechava os olhos, via um mar de estrelas me atravessar...” – Eu via estrelas e flutuava, no espaço que elas criavam entre si, eu me movia a minha vontade e sonhava que existia. Nesse sonho, com lar, barriga cheia e satisfação do consciente, eu desejava voar: eu queria voltar a ter a luz que se unia, em meio à escuridão, às estrelas que brilhavam, como quando vivia, ali, naquele MAR. O desejo era castrador, ou era isso, ou acordar!

Eu continuo existindo nesse sonho. Um sonho lúcido desde que comecei. Me questiono o quanto ele ainda me faz bem, o quanto, ainda, é primordial descobrir sua utilidade no plano das coisas. É um sonho caótico, em que corri por corredores estreitos, outras vezes largos, muitas vezes, em círculos... um labirinto! Não qualquer labirinto, mas um labirinto com centro. E esse centro, que eu almejava, não é o fim... é verdade que as paredes não existem nele! Há muitas flores e um lago que leva ao mar de estrelas. Eu poderia, até, me jogar, mas desaprendi a nadar. Eu ainda não entendi em que momento... não entendi como... já que habilidade adquirida não se perde, ao passo que você sabe de algo, não se pode mais deixar de saber... o que saltou aos olhos é que em meio ao centro do labirinto, a vastidão daquele espaço se prostrou diante de mim, já que as paredes não existiam. Mas mesmo assim, paralisei! Era o momento de me jogar do abismo. E eu o fiz.

Agora, caio em queda livre, enquanto estrelas, que estão longe de mim, passam pelo meu quadro de visão, borradas pelo efeito vertiginoso da queda... eu mexo os pés, os braços e, até, fechos olhos... tem alguém mais aí? ...

Acho que o sonho que ando vivendo é o que me prende. Ele é, exatamente, como os planos, mas não é como as experiências que acreditei, não desenvolve o que senti, quando no mar de estrelas comecei acreditar que tudo era verdade...

Suspenso

Há mais de um mês, todo dia eu choro em algum momento. Às vezes, o choro vem de motivos pessoais, na maioria das vezes, coletivo. Às vezes, choro o dia inteiro! Não importa muito por quanto tempo, onde, na frente de quem, a cara feia, a coriza nasal. Entretanto, tento usar a palavra da moda: Resiliência. Não a palavra, vocábulo, código de linguagem. Mas o sentido que habita nela. E no tédio do terceiro andar, com um vento delicado sacolejando as plantas e pelos de gatos flutuando pelos cômodos, eu me agarro à qualquer  motivo pra me sentir melhor. Pra não decepcionar os planos superiores.
Descobri, enquanto não chorava, que eu sei fazer bolo. E fica muito bom! Dei um pedaço generoso pras vizinhas do apartamento ao lado. Não sabia nem quantas pessoas moravam, ali. Dividimos a mesma encanação de banheiro. Uma parede muito fina divide nossas varandas. E não sabia que, ali, morava uma família bem tradicional, duas mulheres casadas com uma filha, sequer  tinha visto o rosto delas. Compramos cueca! Elas tem lojas de cueca. Elas nos deram panquecas, não sabiam que eu não como carne. Da última vez, que meu marido levou o bolo de limão, ficou combinado que quando a quarentena passar, precisamos fazer um jantar entre todos nós.
Eu tenho três gatos, dois deles nasceram juntos e vivem juntos desde então, parecem gêmeos siameses de tanto tempo que passam enrolados um ao outro. Ambos estão vivendo o quarto ano de vida. A outra, mais nova e menorzinha, foi adotada aos seis meses. Ela está vivendo seu segundo ano de vida. Há um bom tempo, que os outros dois não brincam muito. Achava que estavam velhos. Ontem, peguei um barbante rosa e estimulei. Fiquei exausto de tanto que corri pela casa com os três. Eles não haviam mudado. Era eu!
Desde adolescente, sempre sonhei em morar em outra cidade. Não estava fugindo de nada! Amo minha Volta Redonda. Contudo, sempre quis conhecer novas pessoas, novas formas de viver. Moro em um lugar que levo entre seis e sete horas pra chegar à Volta Redonda. Não tenho carro! Sinto uma saudade imensa da minha família e amigos. Os vejo com certa regularidade, coisa de 2 ou 3 meses de intervalo. Só que agora, não faço ideia de quando os verei. Mas uma coisa mágica aconteceu, falo ao telefone toda semana com a minha mãe por cerca de 2 horas. Antes, ela brigava comigo, sempre aos 10 minutos de conversa, por qualquer motivo banal.
Nunca duvidei que amo meu marido, mas como ele é serviço essencial, descobri que amo esse homem como um bolsonarista ama o Bolsonaro, cegamente!
Passei a dar mais atenção às séries que paro pra ver. Comecei a dar mais atenção ao que me apresenta no quadro da janela. Diminui o consumo de café de uma maneira que nunca imaginei diminuir, só bebo 100 ml por dia, antes, bebia cerca de 2 litros. Fiz promessa, não foi pra nenhuma divindade, mas pra mim mesmo, de não beber até o fim da pandemia. Estou indo bem!
Hoje, no banho, me coloquei a pensar no que posso usar, de tudo que sei, pra ser útil depois da pandemia, já que há previsões catastróficas. Conclui que não importa o quanto de saberes ou coisas que você tem pra doar, num momento assim, mas a força está no quanto você doa daquilo que você sabe ou tem...
Entretanto, tudo isso não é pra panfletar bem-estar. Não é pra mostrar que existe beleza em meio ao caos e que você precisa enxergar. Porque todo dia, em algum momento, eu choro!