O Corpo

Quando você recebe uma notícia dessas, ou quando seus olhos correm por todo o cômodo até, ironicamente, morrerem sobre o fato já consumado  pela vida, há de sentir como quando se enfia o dedo na tomada, ou quando a pequena ferida indolor, sob a água do do chuveiro elétrico, cria um pequeno pico de susto. 
Também, se parece com a doentia sensação de ver o amor da vida sair pela porta pra nunca mais voltar - deve ser o que o cachorro abandonado sente, quando se vira e percebe que o dono deu partida no carro sem o convidar pra entrar.
Em outras palavras, quando os olhos morrem sobre o corpo morto no meio da sala, ao pé da escada ou no corredor que leva ao lavabo, o coração para por um instante, é como se o sangue bombeasse um só pulso gelado e espalhasse o frio por todas as veias. A respiração volta e você deixa correr o fluxo pelo corpo, o cérebro recebe o oxigênio outra vez.
Nada parece tão terrível, é como se não tivesse acontecido. Talvez a sensação de gelo correndo pelas veias seja isso: um sangue frio pra suportar a dor. E o primeiro dia passa!
Mas os dias que se seguem pedem pra serem vividos e você precisa abrir a mesma porta que ele quebrou a chave no verão passado. Você precisa abrir o guarda-roupas e escolher a camisa violeta, que ele te deu no primeiro ano, você precisa tomar banho mas teme tirar a sujeira que o corpo deixou em sua pele. O sabonete ainda tem um pêlo que não é o seu. As bactérias da escova dele ainda estão ali. 
No mês seguinte, quando você puxa o lençol, vem fotos de 2002. Na gaveta, cartas, desenhos, cartões... ele guardou tudo!
O primeiro dia é como apertar a mão do palhaço e levar um choque, parece que a vida continua, mas nos dias que seguem parece que a vida acabou não só no corpo que à cova foi em egresso, mas sua vida também parece acabar...