Vivendo em 2020

 Não houve o suspense angustiante do tic-tac do relógio, pois os tempos são outros. Mas houve outro suspense angustiante: Olhar em volta e ver as paredes no mesmo lugar, a tela de proteção da varanda, cortando a paisagem em pequenos pedaços, o sol fraco da manhã girando, em torno da casa, e morrendo, antes do meio dia, onde não mais me atingiria. O senhor de meia idade, ao longe, roçando, arando e plantando na pequena lavoura do seu quintal. A vida parecia continuar para algumas pessoas. Pra mim, também! Mas não parecia mais a mesma vida...

A luz fria da TV trazia números, os números, em minha mente, se convertiam em corações pulsantes, em vidas complexas, em combinações conflitantes de comportamento e escolhas, que constituíam milhares de indivíduos por aí... era como se uma parte pequena de mim morresse todo dia, mas uma parte tão pequena, que se eu chorasse alto, as pessoas me ridicularizariam. Era uma parte tão imperceptível, que mesmo que eu a olhasse com firmeza, ela me escapava aos olhos. Eu não tinha o que fazer, apenas me manter no luto, um luto silencioso, um luto solitário, um luto, igualmente, imperceptível.

Não bastasse os meus problemas particulares de classe média, lá estava eu, andando em círculos nos cômodos da casa. Assistindo em loop à How I Met your Mother e The new Adventures of Old Christine, na intenção de um sorriso me saltar no rosto. Fazendo exercícios de pouca perda calórica no quarto. Falando com meus pais pela tela do celular. Perdendo a mágica mudança do crescimento dos meus sobrinhos, dissolvendo os laços de amizade, antes, tão firmes...

Havia, apenas, um ano e oito meses que eu mudara de cidade. Uma cidade encantadora, que atrai muitos turistas e, com isso, parentes e amigos frequentavam com certa regularidade. Mas, sem carro, sete horas me separam de todos que amo. A cidade linda, não é tão hospitaleira, o mercado de trabalho é precário, quase inexistente. Então, eu já estava há um ano e oito meses conflituoso comigo mesmo e minhas escolhas. A virada do Tempo só veio para reforçar os meus conflitos...

Foi quando diante os resultados constantes de pressão alta, um cardiologista me encaminhou para acompanhamento psicológico: O luto silencioso continuou... mas a pressão voltou ao normal e eu tive chance de contemplar a escuridão. Não romantizá-la, mas consegui enxergar o potencial de transformação diante dos problemas: Mesmo diante meus problemas e os problemas do mundo, eu consegui transformar toda a dor em Arte: Meditei muito; escrevi 4 histórias que tiveram muitos leitores e avaliações;  e em prol das famílias trancadas com seus filhos, escrevi e ilustrei um livro infantil gratuito, o qual teve uma ótima divulgação e boa aceitação; além do que, tive muito tempo pra estimular e estudar ilustração, logo, saí de 2020 com um enorme avanço nas minhas técnicas e traço. Mas tudo isso foi apenas uma percepção de fora pra dentro...

Esse, também, foi o ano que eu descobri um objeto pontiagudo esquecido dentro do meu corpo psíquico. Levei mais que a metade do tempo, de quando ele foi fincado, ali, para conseguir removê-lo. Ainda não tenho tanta facilidade em falar sobre isso com qualquer um, mas os efeitos e a cura eu tenho dividido com muita gente. Acontece, que eu nunca soube de onde vinham as minhas neuroses, não conseguia explicar a mim mesmo como eu poderia pensar coisas catastróficas ou imaginar acontecimentos horríveis comigo mesmo, ainda que, racionalmente, eu soubesse que tudo era impossível. Foi quando descobri que minha mente criou esse mecanismo pra não me contrapor àquilo que eu realmente precisava. Assim, me vi diante do que fingia não existir... vivi uma vida inteira sob a sombra de que eu não tinha o direito de sofrer, pois existiam muitas pessoas em situações piores. E ignorei! Ignorei e fingi que não doeu cada agressão sofrida diante o que eu sou... Como tudo estava, lá, sem ter passado pelo sofrimento, retirar o objeto pontiagudo da psique, doeu. Eu tive uma semana de muita dor, os sentimentos eram revividos como se tudo tivesse acontecido recentemente. Mas, foi passando...

Esse ano, eu sei que é egoísta dizer, foi, individualmente, muito bom! É errado pensar que a dor deve ser evitada a qualquer custo. Analisando todos os anos da minha vida, talvez, esse ano, depois de ver pessoas ao redor do mundo enterradas em parques, morrendo em corredores de hospitais, familiares com corpos, em casa, esperando a retirada; depois de ver pessoas pobres caindo para a linha da fome; depois de ficar um ano sem ver meus pais, meus irmãos ou sobrinhos; depois de ter me infectado, logo no começo da pandemia; depois de ter perdido uma das maiores oportunidades de emprego da vida; de ter ficado cara a cara com meus monstros... bem, depois de tudo isso, racionalmente, esse deveria ser o pior ano da minha vida. Mas, quando você tira um caco de vidro que fincou na sola do seu pé, a dor não é ruim. Digo, o contato da carne exposta com o ar não é dos melhores, mas a leveza do corpo estranho se descolando da carne é alucinante, deixando tão só um dolorido no atrito... é a mágoa do estrago, que a medida que cicatriza, se torna prazerosa, até não doer mais.

Portanto, não quero transformar essa minha auto-análise sobre o mundo. O próprio termo já sugere a sua individualidade, mas se eu criei, atingi pessoas através da arte, se eu evoluí como artista e como ser humano, posso dizer que esse foi um dos melhores anos da minha vida